Ao falarmos de sadismo distinguimos em
certos indivíduos nervopatas ou tarados um sadismo aberrativo necessitando da
crueldade como afrodisíaco psíquico para obterem satisfação sexual, de um
sadismo considerado como elemento natural do eros, que pode ser
ativado para lá dos limites habituais.
Necessário será, contudo, estabelecer duas
outras distinções. Devemos, em primeiro lugar,
distinguir o sadismo de fundo sexual no sentido lato da palavra, em que é
possível faltar a relação com o sexo e com a mulher, ou surgir então de um modo
subordinado, sendo o fator essencial constituído pelo próprio prazer do mal e
da destruição, em todas as suas formas. Deve considerar-se absolutamente
infundada a dedução genética entre este segundo sadismo e o primeiro, isto é,
de um fato sexual, dedução que é corrente em algumas psicologias e sobretudo na
psicanálise. O sadismo mesmo tomado no seu sentido genérico, pertence a uma
categoria mais vasta e importante que compreende fenômenos assaz complexos e se
define, em última instância, por uma
orientação existencial elementar. Para esclarecermos este ponto será,
contudo, necessário desbravar o terreno, fazendo uma outra distinção, quer
dizer, opondo às experiências que embora liminais e problemáticas conservam um
carácter puro, o artificialismo próprio àquilo que, de um modo geral, se deve
chamar perversão. Há perversão quando se sente prazer em praticar determinados
actos simplesmente pelo
fato de serem interditos e por serem, segundo uma dada moral, considerados como
o «mal» ou como «o pecado». O próprio sadismo pode apresentar esta fisionomia.
São significativas as expressões de Baudelaire a este respeito: «a
voluptuosidade única e suprema do amor consiste na certeza de praticar o mal. O
homem e a mulher sabem desde que nasceram que é no mal que se encontra a
voluptuosidade (1). Tudo quanto contém de «perverso» aquilo a
que se chama o decadentismo do século XIX (em parte Byron, depois Baudelaire,
Barbey d'Aurevilly, Oscar Wilde, Villiers de L'Isle-Adam, Swinburne, Mirbeau,
etc.) apresenta este lado artificial: não é senão literatura e cerebralidade. É
quase como o que sucede com as crianças, que sentem prazer em praticar um ato
somente porque representa o «proibido» e porque tem o caráter de uma
transgressão. Isto pode, contudo, atuar para alguns como um afrodisíaco — e
Anatole France tem razão ao escrever, baseado em idéias semelhantes, que o
cristianismo favoreceu muito o amor ao considerá-lo
um pecado. Podemos
incluir neste quadro o cenário exterior e blasfematório das
missas negras e do
satanismo, tal como chegou ao conhecimento do pequeno público através de obras
como as de Huysmans. É este o quadro do decadentismo. Trata-se presentemente de
avaliar o sadismo, no sentido geral acima indicado, segundo esta medida. Iremos,
assim, referir-nos diretamente àquele que deu o nome a esta tendência: o
«divino marquês» Alphonse François de Sade (1740-1814).
1 Oeuvres posthumes, pág. 78.
Ao considerarmos este personagem, certos
traços seus levam-nos a pensar que o seu sadismo teve principalmente o caráter
de uma simples perversão intelectual. É verdade que Sade, apesar da sua posição
social, caiu mais de uma vez sob a alçada da lei e foi forçado a abandonar a
França durante um certo período, mas aquilo que lhe pode ser imputado está
muito afastado de todos os horrores descritos nos seus livros. Acresce ainda
que, tendo vivido durante o período do Terror da Revolução Francesa, não se aproveitou
de modo algum das oportunidades excepcionais que esta época poderia ter
oferecido a um ser ávido de sangue e de crueldade; Sade expôs-se, ao contrário,
a sérios perigos para furtar à guilhotina alguns dos seus amigos e parentes. Os
dois amores principais da sua vida foram completamente normais: o amor pela
esposa da qual se separou (mas não derivado a abusos sádicos) e, seguidamente,
o amor por uma irmã desta, à qual se uniu. O seu «sadismo» foi, pois,
essencialmente cerebral, isto é, imaginário, limitando-se às descrições das
obras por ele escritas quase como compensação mental da vida solitária que
passou na prisão e na casa de saúde de Charenton, onde Bonaparte o fez
encerrar, embora essencialmente são de espírito, não devido a fatos reais de perversidade
cruel, mas porque tinha escrito contra ele um panfleto, que este não lhe pôde
perdoar. As muitas mulheres que o amaram tentaram obter de Napoleão a
libertação do «pobre
marquês» (2).
2 Sobre este assunto cfr. A. DÜHREN, Der Marquis de Sade nod seine Zeit, Iena, 1901.
A análise das obras de Sade não nos fornece
um quadro unitário. Os escritores franceses que recentemente o redescobriram e
valorizaram quiseram ver nele sobretudo o defensor do homme nature! ou homme réel, isto é, o homem que
se insurge contra tudo o que existe na integralidade dos seus instintos: o que
nos faria chegar a um plano bastante insípido. Por outro lado, encontram-se
sintomas de curiosos resíduos moralizantes, pois não se explica, por exemplo,
como Sade pode usar com freqüência o termo infâmia para designar
as ações nefastas cometidas por um ou outro dos seus personagens. Se
considerarmos seguidamente a narrativa romanceada de fatos realmente sucedidos
chamada «La marquise
de Gange» não somente
deparamos com uma descrição do sacramento da confissão e da penitência dignas
de serem inscritas num manual religioso, como nos é revelado um moralismo que
junta à prova da falsificação da verdade dos fatos a apresentação de um dos
culpados ferido por um castigo divino, em lugar de o subtrair à lei e fazer
viver feliz até à morte.
Precisamos, até certo ponto, de «isolar»
nos escritos de Sade, uma dada linha de pensamento se quisermos obter uma visão
geral da vida que sirva de fundamento filosófico ou de justificação ao
«sadismo». Referimo-nos à idéia de que a força predominante do universo é a do
«mal», da destruição, do crime. Sade admite a existência de um Deus criador que
governa o mundo, mas que o faz como um Deus malvado, como um Deus cuja essência
é o «mal» e que se compraz na maldade, no crime e na destruição, utilizando-os
nos seus desígnios como elementos essenciais (3). Esta é a
razão pela qual a lei da realidade seria, neste caso, o excesso do negativo
sobre o positivo: a natureza mostra-nos que não cria senão para destruir e que
a destruição é a primeira das suas leis (4). Porém, uma
vez reconhecido este fato, impõe-se uma inversão de todos os valores: o
elemento destrutivo e negativo deve ser reconhecido como elemento positivo,
como sendo aquele que é conforme, não só à natureza, mas igualmente à vontade
divina, à ordem (ou melhor, à desordem) universal; e aquele que, ao contrário,
segue a linha da virtude, do bem, da harmonia deveria ser considerado como
pertencendo ao partido dos adversários de Deus.
Uma outra conseqüência lógica será que o
vício e o crime, tornando-se conformes à força cósmica predominante, sairão
sempre vitoriosos, felizes, recompensados e sublimes, enquanto a virtude se
sentirá frustrada, castigada, infeliz e marcada por uma impotência fundamental
(5). A estes fatos poderemos juntar o tema sádico
propriamente dito, a voluptuosidade, o êxtase que está ligado à destruição, à
crueldade e à infração. «Duvidar de que a felicidade máxima que o homem pode
encontrar sobre a terra não esteja irremediavelmente ligada ao crime é,
verdadeiramente, como se se duvidasse que o sol é o principal estímulo da
vegetação» escrevia Sade (6) e acrescentava: «Que ação voluptuosa
constitui a destruição! Não existe êxtase semelhante àquele que se goza
entregando-nos a esta divina infâmia!» (7) O prazer de
uma ação destruidora que desejaria infringir as próprias leis da natureza
cósmica (8) associa-se, por fim, a uma espécie de teoria
do super-homem. «Nós somos deuses!» exclama um personagem dos seus romances.
3 DE SADE, Juliette, ou les prospérités du vice,
ed. 1797, II, págs. 314-350: Existe «um Deus que criou tudo quanto vejo, mas
para o mal; ele não se regozija senão com o mal, e o mal é a sua essência...
Foi no mal que criou o mundo, é por meio do mal que o mantém, é através do mal
que o perpetua; é impregnada de mal que a criação deve existir... Eu vejo o mal
eterno e universal no mundo... O autor do universo é o pior, o mais feroz, o
mais horrível de todos os seres. Continuará, pois a existir após todas as
criaturas que povoam e ste mundo; e é a ele que todas voltarão. Citação de M.
PRAZ, «La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romântica»,
Milão-Roma, 1930.
4 DE SADE, Justine ou les malheurs de la vertu,
I.
5 DE SADE fala de um «extravio na senda da
virtude» e acaba por afirmar que «sendo a virtude
um modo contrário ao
sistema do mundo, todos aqueles que a praticam podem estar certos de
sofrer tormentos
terríveis pela dificuldade que terão em entrar no seio do mal, autor e
regenerador de
tudo». (Juliette, II,
345-346).
6 Justine, II, 117.
7 Juliette, II, 63.
8 Justine, Iv., 40-41.
Embora predominem as situações de sadismo sexual, esse sadismo torna-se um simples episódio relativamente à concepção geral que se apresenta como uma aberração, se a considerarmos separadamente; cessa de o ser se a libertarmos do seu caráter perverso e se a transportarmos para um horizonte mais vasto. O lado perverso encontra-se, em Sade, em tudo quanto é prazer pela transgressão, pelo mal propriamente dito; o que, se analisarmos minuciosamente a idéia central da sua filosofia, implica entre outras coisas uma verdadeira contradição. Falar de mal e de transgressão, tomar como tal determinados atos não tem, com efeito, sentido, se não pressupusermos a existência de uma ordem positiva, de uma lei reconhecida, enquanto que, como já vimos, para Sade esta ordem e esta lei não existem, uma vez que o mal constitui para ele a essência de Deus e da Natureza. Está certa a afirmação de Praz (9) a este respeito, pois ao querer gozar o prazer da transgressão e da violência contra o que está estabelecido o sádico não teria outra hipótese senão a prática da bondade e da virtude, porque elas significariam justamente a antinatureza e o anti-Deus e portanto uma revolta e uma violência contra aquilo que, segundo esta premissa, constituiria o fundo último — maldoso — da criação. Com efeito, todo o «satanismo», para poder assim ser considerado, supõe o reconhecimento íntimo e inconsciente do caráter sagrado e da lei que está a ofender; não pode, assim, ser considerado sadismo senão de um modo subtil, como o do prazer de violar algo ao atuar de uma dada maneira e a que a nossa consciência se opusesse. Existe uma diferença essencial entre praticar um ato que consideramos mal ou pecado (como outros pela mesma razão o não fariam) e praticá-lo por não acharmos nem mal nem pecado. Aquele que age positivamente e não por espírito de polemica, não falaria até de «mal», «pecado» ou «transgressão»; não encontraria em si próprio qualquer ponto de referência para dar a estas palavras algum sentido. Seria simplesmente aquele que se identifica como uma das forças que atuam no mundo (10).
9 Op. cit., pág. 104.
Embora predominem as situações de sadismo sexual, esse sadismo torna-se um simples episódio relativamente à concepção geral que se apresenta como uma aberração, se a considerarmos separadamente; cessa de o ser se a libertarmos do seu caráter perverso e se a transportarmos para um horizonte mais vasto. O lado perverso encontra-se, em Sade, em tudo quanto é prazer pela transgressão, pelo mal propriamente dito; o que, se analisarmos minuciosamente a idéia central da sua filosofia, implica entre outras coisas uma verdadeira contradição. Falar de mal e de transgressão, tomar como tal determinados atos não tem, com efeito, sentido, se não pressupusermos a existência de uma ordem positiva, de uma lei reconhecida, enquanto que, como já vimos, para Sade esta ordem e esta lei não existem, uma vez que o mal constitui para ele a essência de Deus e da Natureza. Está certa a afirmação de Praz (9) a este respeito, pois ao querer gozar o prazer da transgressão e da violência contra o que está estabelecido o sádico não teria outra hipótese senão a prática da bondade e da virtude, porque elas significariam justamente a antinatureza e o anti-Deus e portanto uma revolta e uma violência contra aquilo que, segundo esta premissa, constituiria o fundo último — maldoso — da criação. Com efeito, todo o «satanismo», para poder assim ser considerado, supõe o reconhecimento íntimo e inconsciente do caráter sagrado e da lei que está a ofender; não pode, assim, ser considerado sadismo senão de um modo subtil, como o do prazer de violar algo ao atuar de uma dada maneira e a que a nossa consciência se opusesse. Existe uma diferença essencial entre praticar um ato que consideramos mal ou pecado (como outros pela mesma razão o não fariam) e praticá-lo por não acharmos nem mal nem pecado. Aquele que age positivamente e não por espírito de polemica, não falaria até de «mal», «pecado» ou «transgressão»; não encontraria em si próprio qualquer ponto de referência para dar a estas palavras algum sentido. Seria simplesmente aquele que se identifica como uma das forças que atuam no mundo (10).
9 Op. cit., pág. 104.
10 Um tipo de sádico não cerebral, mas autor
efectivo de atrocidades e perversidades inauditas, foi o marechal Gilles de
Rais, que já tinha combatido sob as ordens de Joana d'Arc. A parte o facto de
se apresentar como uma espécie de obcecado, até ele morreu em perfeita
contrição. Oscar Wilde, apólogo da perversidade, arrependeu -se na prisão por
tudo aquilo a que na prática ela se reduzia em si próprio: a um homossexual com
fo rtes tendências estetizantes — enquanto que o seu heroi Dorian Gray, nos
parece agir continuamente sabendo que faz mal, reconhecendo, apesar de tudo o
oposto como o bem.
Será necessário indicar, neste ponto, a
possibilidade de horizontes assaz diferentes para experiências idênticas, e
fá-lo-emos retomando aquilo que já dissemos acerca da metafísica da dor. Sade
não foi o primeiro a pôr em evidência o sentido e a extensão que tem no mundo o
elemento destruidor, procurando deduzir daí o fundamento de uma espécie de
contra-religião; as suas idéias tomam um caráter especial unicamente através da
unilateralidade e da «perversidade». Deveremos, numa concepção completa,
distinguir três aspectos da criação: a potência que cria, a potência que
conserva e a potência que destrói, correspondendo à conhecida tríade hindu:
Brahmâ, Vishnu e Shiva. Encontramos, em termos teológicos abstratos, a mesma
tripartição na
idéia ocidental da
divindade, considerada segundo a sua tripla função de criar,
preservar e fazer voltar
ao seu seio aquilo que criou. Contudo e sob determinados aspectos, ou seja, do
lado dinâmico e imanente, esse fazer voltar ao seu seio poderia também
equivaler à destruição, à função de Shiva, se na divindade se reconhecesse o
infinito, aquilo que na sua essência transcende toda a coisa, toda a lei, tudo
o que é finito. E nesta base que se pode definir aquilo que se chamou a «Via da
Mão Esquerda», o vâmâcârâ tântrico (11). No Ocidente o antigo dionisismo pré-órfico,
a religião de Zagreus como o «grande Caçador que tudo destrói», e no Oriente
precisamente o Shivaismo e os cultos ligados a Kâlî, a Durgâ e a várias
divindades terríveis, que é possível encontrar em outros povos, foram
igualmente caracterizados pelo conhecimento e pela exaltação de tudo o que é
destruição, transgressão, e furor. Também eles conheceram o êxtase libertador
que pode provocar tudo isto, muitas vezes através de uma relação íntima com a
experiência orgíaca: porém, ao contrário de Sade, sem qualquer vestígio de
transgressão sacrílega e dentro de um quadro ritual, sacrificial e
transfigurante.
Num conhecido texto que, na índia, tem
quase a importância e a popularidade de uma Bíblia, o Bhagavad-gitâ, -nos apresentada em termos rigorosamente metafísicos e teológicos a
essência da «Via da Mão Esquerda». Diz-nos esse texto que a Divindade na sua
forma suprema (na «forma universal» que, por um privilégio especial é revelada
durante uns breves instantes ao guerreiro Arjúna) não pode ser senão o infinito
e este não pode representar senão a crise, a destruição, a fratura de tudo o
que tem um caráter finito, condicionado, mortal: quase como no caso de uma
voltagem muito elevada que fulmina o circuito em que foi inserida. Deste modo,
pensa-se que o tempo, compreendido como a força que altera e destrói, encarna
de um certo modo, este aspecto de transcendência da divindade. Contudo, a
conseqüência é que, justamente no momento das crises mais destrutivas, se pode,
de súbito, manifestar a realidade suprema, a grandeza aterradora que transcende
todas as manifestações. E interessante observar que este ponto de vista não é
exposto no texto que acabamos de citar para justificar o mal ou a perversidade,
mas sim para fornecer uma sanção metafísica ao heroísmo guerreiro contra
qualquer humanitarismo ou sentimentalismo. O próprio Deus exorta o guerreiro
Arjûna a não hesitar em combater e ferir. «Aqueles que vais matar» — diz-lhe —
«já estão mortos em mim: tu não és senão o instrumento (12).» No seu ímpeto heróico, que não deve ter em consideração nem a
própria vida, nem a de outrem, e que irá atestar a fidelidade à natureza
própria a quem nasceu de casta guerreira, Arjûna será o reflexo da própria
potência, grandiosa e terrível, da transcendência que tudo quebra e tudo
altera, fazendo pressentir a libertação absoluta (13). Foi baseados nestes fatos e na existência de uma tradição
correspondente devidamente confirmada, que juntamos ao número de modos de
embriaguez divina ou de «mania» de que fala Platão, uma outra, com base
heróico-guerreira propriamente dita, e que ele não considerou.
Devemos, finalmente, ter em mente que este estado de exaltação ativa e
transfigurante deveria também existir e evidenciar-se nos momentos supremos da
experiência sacrificial, nos executores de sacrifícios sanguinários,
especialmente se eram praticados sob o signo de divindades terríveis como as
que indicamos.
11 Sobre a Via da Mão Esquerda cfr. J. EVOLA, Lo Yoga della Potenza, Roma, 1968.
12 É a contrapartida do que afirmou DE SADE (Justine, II): «Se a destruição é uma das leis (da
natureza), então aquele
que destrói obedece-lhe.»
É possível encontrar em Novalis o último
eco desta tradição. Referimo-nos já ao fato de este autor se ter apercebido do
fenômeno transcendente que pode estar escondido no sofrimento e até na doença.
Segundo ele, foi com o «mal» que apareceu na natureza a liberdade, o livre
arbítrio. «O homem pecou quando se quis tornar Deus.» A causa da caducidade, da
alteração, até da morte, encontra-se no espírito, no fato de a natureza estar
ligada ao espírito tomado como um para-alémda-natureza, de uma força
transcendente para além do finito e do condicionalismo. Estes fenômenos
«negativos» não atestam, pois, o poder da natureza sobre o espírito, mas sim o
deste sobre a natureza; «o processo histórico é um braseiro», diz Novalis, «e a
morte pode talvez representar o limite positivo da transcendência de uma vida
para além da vida» (14). Podem citar-se, também, as palavras de
Schlegel: «E. somente no entusiasmo da destruição que se
revela o sentido da criação divina. Somente no meio da morte fulgura a vida
eterna (15).»
13 Sobre tudo isto cfr. Bhagavad-gftâ, IX, passim e 33.
14 Ed. Heilborn, v. II, págs. 230, 650, 586, 502 e
segs. 514.
15 F. SCHLEGEL, Kritische Schriften (ed. Rasch), Munique, 1956, pág. 101.
Estas citações de Novalis apresentam,
contudo, certas imprecisões por falta de
ligação com uma das
tradições indicadas na «Via da Mão Esquerda», mantendo-se, por isso, no plano
da pura intuição filosófica, sem qualquer contrapartida prática. Porém em Sade,
no «divino marquês» já nada é divino e os reflexos longínquos dessa sabedoria
perigosa aparecem o mais possível deformados e satanizados.
Parece existir também, neste caso,
sobretudo o intuito da destruição de todos os limites, não sendo exaltada senão
uma espécie de super-homem tétrico, sem brilho; certos comentadores modernos
como G. Bataille e Maurice Blanchot, tem sabido falar unicamente de uma
«solidão soberana» quando o homem de Sade conduz inexoravelmente a um acume
tudo o que é violência e destruição. Não é por isso menos significativa a
relação específica que se estabelece em Sade entre a mística da negação e a
esfera sexual. Colocando o essencial no lugar que lhe é devido, chegaremos ao
fundo em que se integram certos aspectos liminais da própria experiência
erótica e teremos a possibilidade de distinguir o que é, e o que não é,
perversão.
Uma vez que a principal orientação seguida
neste livro é a da «Via da Mão
Esquerda» acrescentaremos
algumas informações acerca do fundo cosmológico que é próprio a esta Via na
tradição hindu. O ponto de partida será a doutrina do
desenvolvimento cíclico
da manifestação, compreendendo duas fases ou aspectos essenciais: o pravrttîmarga
e o nivrttîmarga. Na primeira fase o espírito absoluto determina-se, torna-se finito, e
une-se às formas e delimitações («nome-e-forma», nama rûpa) visíveis em todas as coisas e seres que nos cercam. Este processo
desenvolve-se até um limite para além do qual a direção se altera, e a segunda
fase, o nivrttîmarga, sucede-lhe no sentido de um regresso, de um
afastamento do espírito de tudo quanto é finito, formado e manifesto, de uma
rescisão da relação de identificação com a do espírito, verificada na fase
precedente (16).
Brahmâ e Vishnu, considerado o primeiro como
o deus que cria e o segundo como o que conserva, reinam no pravrttî-marga, Shiva no nivrttîmarga. A «Via da Mão
Direita» (dakshinâcâra) inclui as orientações, vocações profundas e
atitudes na primeira fase, enquanto a «Via da Mão Esquerda» (vâmâcârâ)
está ligada à segunda fase. Correspondem, ao aspecto criador, positivo e conservador
da manifestação leis, normas e cultos determinados, sendo a sua ética a da
fidelidade à própria natureza (svâdharma)
no âmbito da tradição. Na segunda fase a via é oposta: é o desprendimento, o
abandono de tudo isto. Para o desprendimento duas formas são possíveis: uma
ascética, a outra destruidora e dissolutiva. É esta que caracteriza o vâmâcârâ, ou seja, a própria «Via da Mão Esquerda», igualmente ligada às práticas
tântricas denominadas o «ritual secreto» (o Pancatattva), enquanto que o sentido ascético é sobretudo representado pelo Laya-yoga
ou o Yoga da dissolução.
O termo vâmâ (esquerda) da
expressão vâmâcârâ é também interpretado em alguns textos
com o sentido de
«contrário»: quer dizer, a oposição de tudo quanto é próprio ao
pravrttîmarga, aos aspectos criadores-conservadores da
manifestação, sendo
consequentemente, mais do
que uma atitude de desprendimento, de desprezo por todas as leis e normas, a
ética do antinomismo, ou mais precisamente, a anomia daquele que se coloca sob
o signo do nivrttîmarga.
Tecnicamente «o método
indicado pelos mestres (desta via) é o de empregar as forças de pravrttî (as forças próprias à fase positiva e vinculante da manifestação) de modo a torná-las
autodissolutivas» (17). O siddha, isto é, o
adepto desta via, não conhece leis, sendo conhecido por svecchâcâri, «aquele que pode fazer tudo o que quer».
16 Este ponto de vista corresponde exactamente à
teoria plotiniana do proodos e do epistrofé,
correspondendo a segunda
destas fases, por sua vez, àquilo a que os Estoicos chamaram o
ekpurosis e os primeiros
autores cristãos o apokatastasis panthos. Todavia as ideias contidas nestas
últimas concepções foram materializadas sob a forma de acontecimentos situados
no fim dos tempos.
17 Poderemos cfr. o que ficou dito numa afirmação
de VALENTINO o Gnóstico (apud MEAD, cit.,
pág. 224): «Desde o
começo fostes imortais e filhos da Vida—Vida semelhante à que gozam os Eões.
Desejaríeis, contudo,
partilhar a morte entre vós para a dispersar e a prodigar; para que a morte
pudesse morrer em vós e
por vossas mãos, uma vez que, na medida em que dissolveis o mundo e não sois dissolvidos,
sois os senhores de toda a criação e de toda a destruição.» Para referências
sobre a «esquerda» na tradição cabalística, cfr. AGRIPPA (De occulta
philosophia, III, 40), que relata o modo como os cabalistas distinguem os dois
aspectos de divindade; um chama-se phad mão esquerda e espada do Senhor,
correspondendo-lhe o temível sinal que está impresso no homem, e devido ao qual
todas as criaturas lhe são por direito, submetidas; o outro aspecto chama-se
haesed, clemência, mão direita e é, ao contrário, o princípio do amor.
Foi estabelecida para o termo vâmâ, esquerda, uma outra interpretação, a de «mulher», que nos vem
especialmente recordar o papel que a utilização da mulher e da orgia (uma vez que o Pancatattva tântrico autoriza não só a utilização da mulher como a das bebidas
inebriantes) desempenham na «Via da Mão Esquerda». Deste modo, pode
considerar-se esta via, do ponto de vista técnico, como sinónimo de latasadhâna, termo que faz alusão à posição complicada que a mulher assume, nos meios
hindus, durante o ato sexual mágico (18).
É natural que os adeptos destas vias
aprovem a que escolheram, e condenem a outra. Os tantras, por exemplo, afirmam
que a diferença que existe entre a «Via da Mão Esquerda» e a «Via da Mão
Direita» é a mesma que há entre o vinho e o leite (19). Elas são, contudo, consideradas como dois métodos diferentes para
atingir um fim único. Trata-se, pois, e tão somente, de estabelecer, para cada
caso, qual das duas vias convém às inclinações e à própria natureza de cada um.
J. Woodroff observou a este respeito que em lugar de «mal» cada um deveria
referir-se «àquilo que não me convém», e em vez de «bem» «àquilo que é bom para
mim». O antigo adágio : non licet omnibus Citheram adire, tem o mesmo sentido.
Convém, finalmente, sublinhar que a «Via da
Mão Esquerda» é válida também no plano geral indicado pela Bhagavad-gïtâ, em que se fala, por exemplo, da via própria ao guerreiro, sem
referências sexuais ou orgíacas de qualquer ordem. Na mesma Bhagavad-gïtâ
esta via é assimilada,
naquilo que se refere ao seu fim supremo, à da fidelidade, ao seu modo de
existência e de ritualização ou sacralização da vida (a fórmula correspondente
é: tat madarpanam Kurushva) isto é, completamente
assimilada ao dakshinâcâra, à «Via da Mão
Direita»).
18 Sobre este assunto cfr. J. WOODROFFE, Shâkti e Shâkta, Londres--Madrasta, 1929, pág. 147
e ss.
19 Ibid., pág. 153.
Retirado de
"A metafísica do sexo" de Julius Evola. Re-editado por AShTarot
Cognatus.
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